domingo, 29 de maio de 2011

Nono Fichamento

A introdução na medicina
de técnicas oriundas da genética
ocasionou uma ruptura antropológica?
Anne Fagot-Largeault
scientiæ zudia, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 161-77, 2004

"A descoberta por Watson e Crick da estrutura em dupla hélice da molécula de DNA
(Nature, 1953, 171, p. 737-8), cujo qüinquagésimo aniversário foi celebrado com pompa
(Nature, 2003, 421, p. 395-453), revolucionou a medicina? Aos olhos dos médicos
clínicos, o impacto da genética molecular sobre a prática médica é escasso; aliás, eles
colocam a questão para o futuro: “a genética revolucionará a medicina?” (cf. Holtzman
& Marteau, 2000). Contudo, certos sociólogos ou filósofos da medicina declararam-se
apreensivos com as conseqüências devastadoras que o conhecimento genético, o recurso
aos testes genéticos e a utilização de biotecnologias poderiam ter sobre o que se
convencionou chamar humanismo médico. Certamente não é a primeira vez que um
avanço científico é percebido como portador de uma ameaça de “ruptura antropológica”.
Sobre a introdução nas escolas médicas, no final da Idade Média, da prática da autópsia,
Le Breton escreve: “A medicina moderna é um efeito desta ruptura antropológica."
(p.161)

"O clínico John Bell foi encarregado pelos redatores de Nature, para o número comemorativo
do cinqüentenário da descoberta da estrutura do DNA, de avaliar esse impacto.
Se nos perguntarmos, diz ele, sobre o que revolucionou a prática médica durante
a segunda metade do século xx, pensamos na descoberta da penicilina e em seu desenvolvimento
por Chain e Florey (cf. 1941), ou na demonstração realizada por Doll e Hill
(cf. 1950) de que existe uma ligação causal entre o tabagismo e o câncer bronco-pulmonar.
Essas descobertas salvaram centenas de milhares de vidas permitindo curar ou
prevenir eficazmente graves doenças. A descoberta da estrutura molecular do gene tinha
para a medicina um interesse teórico tão mais evidente quanto se sabia, ou supunha-
se, desde muito tempo, que muitas doenças humanas possuem um componente
hereditário. Porém, cinqüenta anos depois, exceto para o caso de doenças monogenéticas
de transmissão mendeliana, que afeta somente uma pequena parcela das populações
humanas, os médicos permanecem de preferência céticos sobre o interesse
que pode haver em pesquisar, custe o que custar, os fatores genéticos, sabendo que na"
(p.162)

"a suspeita difundiu-se: se a genética contemporânea não modifica diretamente
o tratamento do diabetes, da hipertensão ou da esquizofrenia, ela indiretamente perverteu
o espírito da medicina pela promoção de um reducionismo desumanizante, ao
incriminar as causas moleculares em detrimento do tratamento global das pessoas
doentes. Na realidade, a conjectura ou a tese de uma “geneticização” perversa da medicina
(e da cultura ocidental) pôs em confronto duas facções. Filósofos e sociólogos de
tendência “construtivista” argumentaram a favor dessa tese. Alguns historiadores da
ciência opõem-se vigorosamente a ela. Num segundo plano da controvérsia, o que está
em questão (entre outras coisas) é o estatuto da medicina entre as ciências da natureza
(Naturwissenschaften) e as ciências do espírito (Geisteswissenschaften)."
(p.165)

"Um historiador das ciências, Adam Hedgecoe (cf. 1998), alicerçando-se sobre
os estudos de opinião de Celeste Condit (cf. Condit & Williams, 1997), (do lado europeu,
pode-se citar o Eurobaromètre das biotecnologias, editado pela União Européia),
afirma que os alarmes expressos não repousam sobre qualquer base factual. O medo e
o pânico do controle genético pelos patrões, pelas seguradoras e pela polícia repousava
sobre antecipações que se revelaram falsas, pois não houve, por várias décadas, praticamente
nenhum exemplo de abuso. Os jornalistas que transmitem a informação científica
aparentemente não trabalham assim tão mal, pois os cidadãos integraram a idéia
de que a influência dos genes é probabilística. O aconselhamento genético é feito com
prudência, respeitando as decisões individuais, e as famílias que a ele recorreram não
se queixaram. A convicção de que a acessibilidade a um diagnóstico pré-natal para certas
afecções (trissomias, X-frágil) iria macular as pessoas acometidas, tornando suas vidas
impossíveis, culpando os parentes que recusam a interrupção médica da gravidez, parece
refutada pelos fatos: quando nascem menos crianças deficientes, estas são melhor
acolhidas. Enfim, pode-se notar que as “limpezas étnicas” que o século vinte infelizmente
conheceu não estavam fundadas sobre qualquer pretexto médico ou científico."
(p.167)

"A realidade... Mas, considere-se então o que se passou em Chipre, depois na
Grã-Bretanha e no Canadá, protesta ten Have, remetendo ao estudo que ele conduziu
juntamente com Hoedemaekers (cf. Hoedemaekers & Have, 1998), sobre a detecção
genética da beta-talassemia. A beta-talassemia é uma doença da hemoglobina (proteína
do sangue) devida à síntese de uma cadeia beta incompleta. É uma doença de transmissão
autossômica recessiva, freqüente na bacia mediterrânea. Os heterozigotos não
são sintomáticos. Os homozigotos são afetados por uma anemia que, sem tratamento,
conduz à morte precoce na infância; com tratamento (transfusão sangüínea, quelação
do ferro) a esperança de vida é prolongada (até quinze ou vinte anos), mas com uma
qualidade de vida miserável. Em Chipre, antes dos acontecimentos (de 1980), a prevalência
da doença era de 15%, um fardo muito pesado para essa população. Um programa
de detecção, ligado a uma campanha de informação maciça, mobilizou os profissionais
da saúde, os educadores, os líderes políticos e a igreja ortodoxa. A primeira
etapa foi a detecção dos heterozigotos: explicou-se que o casamento de dois heterozigotos
comportaria, a cada gestação, a probabilidade de um sobre quatro para o nascimento
de uma criança doente (homozigoto), exigindo-se um certificado pré-nupcial
de detecção. Na segunda etapa, ofereceu-se aos casais heterozigotos a possibilidade de
um diagnóstico pré-natal e da interrupção da gravidez caso a criança por nascer fosse
detectada homozigota."
(p169.)

"Em seu livro sobre as biotecnologias, Claude Debru (cf. Debru & Nouvel, 2003) traça
um excelente histórico da engenharia genética: o seu início (1972), a tomada de consciência
acerca dos riscos da pesquisa, a moratória e as medidas de segurança resultantes
do processo de Asilomar, os primeiros sucessos – a síntese da insulina humana por
uma bactéria (depois por uma levedura) geneticamente modificada (1978), a criação
de plantas (1980) e de animais (1981) transgênicos e, depois, os ensaios (desajeitados
ou prematuros) de terapia gênica no homem. Segundo um relatório americano surgido
em 2003 (cf. Parens & Knowles, 2003), atualmente teríamos que tomar cuidado
com a transferência de tecnologias proveniente da engenharia genética para a reprodução
humana geneticamente assistida."
(p.170)

"Alguns filósofos tentaram formular princípios reguladores desses avanços tecnológicos.
Para Jürgen Habermas (cf. 2002), a idéia de que um ser humano possa ser,
por menor que seja, uma construção tecnológica (porque, por exemplo, ter-se-ia nele
corrigido um defeito genético) é inaceitável. Fiel à distinção kantiana entre o plano da
natureza e o da liberdade, temendo que a tecnicização da natureza humana perturbe o
sentido que temos da nossa dignidade, ele resiste firmemente à perspectiva de uma
invasão do domínio da reprodução humana pela engenharia genética: “se o hábito de
recorrer à biotecnologia para dispor da natureza humana ao sabor de nossas preferências
é adotado, é impossível que saia intacta a compreensão que temos de nós mesmos
do ponto de vista de uma ética da espécie humana” (Habermas, 2002, p. 109). Claude
Debru, retraçando a história das biotecnologias, constata que nos assombramos com
Frankenstein, mas na realidade fabricamos insulina para tratar das pessoas diabéticas.
Tendo exposto a posição de Habermas, recusa sua rigidez pelo motivo de que as
bricolagens biotecnológicas estão em continuidade evolutiva com as bricolagens da
natureza viva: “os instrumentos e os fundamentos da bricolagem biotecnológica e os
instrumentos e os fundamentos da bricolagem evolutiva são os mesmos” (Debru &
Nouvel, 2003, p. 420). Ele se inclina por uma flexibilidade na introdução de avanços
biotecnológicos que confiam na capacidade de otimização inerente à natureza humana
e que não comprometam o futuro: “Devemos tomar cuidado para não entrar no futuro
andando demasiadamente para trás” (p. 409)."
(p.173)

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